Documentário brasileiro é apresentado no presídio onde foi gravado
No dia 07 de maio de 2022, sábado, o diretor Luiz Fernando F. Machado exibiu sua obra de documentário “Zaratustra ainda Fala (2016)” para detentos da Colônia Penal Agrícola de Palhoça.
A atividade ocorreu com algumas dezenas de reeducandos que participam das atividades pedagógicas na instituição prisional. Durante o debate após a exibição, o diretor apresentou o Prêmio “Free Fly Over Danube” de melhor equipe técnica, conquistado em Budapeste pelos detentos que trabalharam no filme nos diversos setores da produção. Sim, os detentos da Colônial Penal de Palhoça receberam prêmio de cinema na Europa.
Confira o teaser do filme:
Zaratustra Ainda Fala - TEASER from CIA BOANOVA CINEMA REGIONAL on Vimeo.
Assim como afirma Cezar Migliorin (2010, p.10), "o documentário é uma arte do humano, porque é capaz de potencializar a singularidade da vida de cada um, de tornar seu modo de vida visível, de apresentar suas formas de ocupar a pólis, de fazer política".
Foi neste sentido que, em meio aos atentados incendiários que ocorriam em todo estado de Santa Catarina em 2014 que o diretor, preso na ocasião, se sentiu impelido a fazer um documentário sobre o ambiente em que vivia, mostrando a maneira singular como aqueles reeducandos reinventam seus modos de vida diante de situações adversas pertencentes a um juridismo próprio do crime.
O filme foi gravado através de oficinas cinematográficas da Estética da Sopa de Pedra ministradas por Luiz Fernando nas horas de banho de sol integrando direta e indiretamente toda a colônia penal, por fim, o documentário de longa-metragem trabalhou pela representação da realidade dos presos, na qual não interessam apenas apresentar ou escrever os presos, "mas também suas capacidades produtivas" (MIGLIORIN, 2010, p. 10). Estas capacidades produtivas e também criativas ficaram explícitas com a repercussão do filme no Brasil e no exterior, participando de dezenas de festivais e conquistando diversos prêmios em diferentes países.
“ No momento da criação, o artista é inteiramente livre: O bem fundamental, o objetivo essencial de sua atividade criadora é a beleza da obra a fazer e a expressão do mundo interior do artista em suas relações com o mundo real” (Hegel, Esthètique).
Geralmente, as informações da mídia sobre o sistema carcerário são expostas a partir de apenas uma perspectiva (que, ilusoriamente, se pensa objetiva), direcionando o senso comum para a imagem pesada e negativa da “massa carcerária”. Os assuntos noticiados são os ataques organizados por grupos criminosos, a superlotação das prisões ou as greves dos servidores da segurança pública, etc.
Desta forma, o que o detento tem de particular, de positivo e de negativo, sua singularidade, acabam passando despercebidos. Conforme explica Comolli (2008):
A crítica maior que devemos dirigir à mídia,agente de informação, refere-se à denegação batizada “objetividade”, por meio da qual ela mascara, com demasiada frequência, o caráter eminentemente precário, fragmentário e, por fim, subjetivo daquilo que é somente o seu trabalho.
Contra esta tendência objetivante da mídia, o documentário Zaratustra ainda Fala (único longa gravado e montado dentro do sistema prisional brasileiro por detentos) apresenta uma abordagem subjetiva, na qual o diretor se apresenta como conector, a obra de arte como conexão política entre um meio que pertence e influencia diretamente a sociedade, como uma ponte que atravessa informações que são como “representações de experiências mais localizadas”: “Conectar, se colocar em relação com o outro, procurar compilações, confrontações com o espaço coletivo, ação no lugar da contemplação, a experiência para alargar o saber, os gestos, as atividades, os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões, possibilitando a vivência de fenômenos inéditos, “o cineasta como conector” (MIGLIORIN, Cézar).
Estas “representações de experiências mais localizadas” acabam por criar novas perspectivas nos espectadores, pois geram reflexão política. Assim, o documentário se torna uma ferramenta para a criação de milhares de novos mundos possíveis na psique dos indivíduos que, em rede, compõem a sociedade.
“Zaratustra Ainda Fala”, de Luiz Fernando F. Machado, segue esteticamente como referência principal o filme de documentário de Eduardo Coutinho, Edifício Master (2004), onde o cineasta e sua equipe entrevistam os moradores de um condomínio em Copacabana em seus apartamentos particulares. Porém o “condomínio” a ser gravado neste projeto é a Colônia Penal Agrícola de Palhoça, e os detentos recebem o cineasta e equipe técnica composta por detentos, em suas celas.
Apesar de se tratar de ambientes bastante distintos, as entrevistas possuem uma regra similar ao trabalho de Coutinho: "Como regra geral, Coutinho não queria saber o que tal pessoa pensa sobre política, fatos atuais, movimentos sociais; está interessado em saber onde o personagem nasceu, casou, estudou, se teve filhos, o que faz, como conheceu a esposa, a namorada, como foi parar ali" (LINS,Consuelo,2004,p.142).
Trata-se de um documentário performático reflexivo, porque seu realizador, cineasta, preso (na ocasião), participa diretamente das entrevistas e interage diretamente simultaneamente com os detentos colaboradores.
A sensibilidade do cineasta, na condução das entrevistas ou nas cenas de transição que são uma releitura da obra de Nietzsche tornam-se evidentes, segundo Nichols, Bill ( 2005):
"Estes filmes performáticos nos envolvem menos com ordens de imperativos retóricos do que com uma sensação relacionada com sua nítida sensibilidade. A sensibilidade do cineasta. busca estimular a nossa.”
O filme reconfigura a partilha do sensível, dando visibilidade a pessoas pouco escutadas pela sociedade.
Aí está a potência política do filme, na medida em que, como afirma Jacques Rancière:
"A política consiste em reconfigurar a partilha do sensível que define o comum em uma comunidade, em introduzir novos sujeitos e objetos nela, em tornar visível o que não era visto e fazer ouvir como falantes os que eram percebidos como animais barulhentos".
Confira a análise crítica de Fernando Vugman sobre o filme na pré-estreia no Centro Integrado de Cultura em Florianópolis:
Em Santa Catarina o filme não foi selecionado em festivais, confira o trajetória de prêmios e seleções ao redor do mundo:
Prêmios
Melhor Documentário Relações Humanas - Best Human Relationship Documentary - Star Doc. Los Angeles/EUA (2017);
Audience Special Award - Daroca Prisión & Film Festival – Espanha (2017);
Menção Honrosa: Semana Internacional de Cine de Lugo - Espanha (2017);
Menção Honrosa: Los Angeles Underground Film Forum - USA (2016);
Menção Honrosa: Experimental Fórum 2016 –Los Angeles/ USA (2016).
Golden Danube - Melhor Filme - Budafest Film Festival - Hungria (2016);
Blue Danube - Melhor Diretor - Budafest Film Festival - Hungria (2016);
Free Fly Over Danube - Prêmio Especial para Equipe técnica e Casting Budafest Film Festival - Hungria (2016).
Seleções Oficiais
Multicultural Film Festival Toronto - Canadá (2021);
Nice International Film Market - França (2019);
Mostra de Cinema Brasileiro em Viena - Áustria (2018);
DocuSlate –Hollywood – USA (2017);
Star Doc. Los Angeles/EUA (2017);
AFC Global Fest – Índia (2017);
Fake Flesh Film Festival, Canadá;
ABUJA International Film Festival, Nigéria (2017);
Nisville International Festival - Sérvia (2107);
Daroca Prisión & Film Festival – Espanha (2017);
Semana Internacional de Cine de Lugo - Espanha (2017);
Cine Por Los Derechos Humanos de Bogotá - Colômbia (2017);
Invicines Festival de Cine Social - Córdoba - Argentina (2017);
Nice International Film Festival South Of France - França (2017);
Pipa International Film Festival - Brasil (2017);
International Filmmaker Festival of World Cinema London - Inglaterra (2017);
BUDAFEST Film Festival - Hungria (2016);
12 Months International Festival - Romênia; (2016);
Los Angeles CineFest - USA (2016);
Los Angeles Underground Film Forum - USA (2016);
Experimental Fórum 2016 –Los Angeles/ USA (2016).
Em janeiro de 2022 o documentário brasileiro abriu oficialmente a Primeira Mostra de Cinema Penitenciário da Colômbia, evento organizado pela Universidade de Antióquia, o filme segue com mais de cem exibições com debate em universidades, escolas, congressos e etc.